Hoje, (como em tantos outros dias!) passei por uma livraria e vi as mais recentes, lustrosas e coloridas edições das obras de Saramago.
Pensei na data das capas: 2018, outubro. Sem grande dificuldade, voltei vinte anos no tempo, e reparei num senhor já meio careca, de óculos com fundo de garrafa (em 1998 ainda não tinham sido inventadas as lentes extra finas), encurvado pelo tempo, mas alto, tão alto de sabedoria. Eis que se baixa levemente numa vénia José de Sousa Saramago e recebe o prémio. Sim, 1998. Sim, o Nobel. A audiência aplaude. E regresso ao presente.
Este ano, saí de um sistema de ensino em que nos obrigam a ler. Obrigam-nos a ler obras que muitos não conseguem compreender, que outros tantos não querem sequer compreender e outros – compreender o quê? – talvez nunca tenham ouvido falar. Porque ler nunca devia ter sido uma obrigação, um salto dado com pernas maiores do que temos, um passo cego para o precipício, mas sim um caminho percorrido com tempo, com pausas, inquietações e perguntas. Obrigam-nos a ler. Como, pergunto-me, e para quê? Para que alguns, quem sabe demasiados, nunca mais queiram pegar num livro, para que pensem que é algo enfadonho, aborrecido, ou, utilizando vocabulário corrente, uma seca?
Falta substância, falta o caminho. As pernas crescem com o tempo, os olhos aprendem a ver. Só temos que lhes dar essa oportunidade. Todo este desabafo para chegar a um ponto: como ler Saramago. Enquanto mera leitora, não me considero ninguém para dar dicas. No entanto, ao contrário de muitos, fiz e continuo o meu percurso na literatura e parece-me que talvez consiga ajudar.
É então que, pela primeira vez, com um terror dissimulado no olhar, abrimos o livro e deparamo-nos com uma forma de escrita revolucionária que contraria tudo o que nos ensinaram PONTO FINAL
PARÁGRAFO
TRAVESSÃO
Não, não escrevia assim por achar que era melhor, por ser pedante, o que lhe queiram chamar. A justificação chega-nos por escrito nos seus diários, os Cadernos de Lanzarote: «Todas as características da minha técnica narrativa atual (eu preferiria dizer: do meu estilo) provêm de um sentido básico segundo o qual o dito se destina a ser ouvido. Quero com isto significar que é como narrador oral que me vejo quando escrevo e que as palavras são por mim escritas tanto para serem lidas como para serem ouvidas.»
Como tal, sugiro que se tente fazer uma leitura em voz alta do livro em questão, comprovando o que diz o autor e, também, que o texto não é tao complicado quanto aparenta ser. Certamente será eficaz na adaptação a este novo mundo.
Saramago nem sempre foi escritor. Na realidade, antes de se dedicar à pena foi serralheiro. Nunca deixou de ler. Possuía todo um nível de cultura inimaginável e, por cúmulo, estudava profundamente as situações e épocas sobre as quais ia escrever. Quem pense ler algum dos seus livros sem ter uma noção mínima daquilo que é a História terá a tarefa seriamente atrapalhada. Fazer uma pesquisa breve dos temas tratados, contextualizando o necessário é um dos passos mais importantes para levar a leitura até ao fim.
Por fim, proponho que não se deixem ficar para trás. Utilizando palavras alheias de um outro escritor que na verdade foi vários: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”. Por muito singular que seja a sensação, por muito desinteressante que possa, à partida, parecer o livro, deixá-lo a meio (ou talvez no segundo capítulo) não é, nunca será, a melhor opção.
Saramago possuía um sentido crítico contundente que aparece frequentemente adornado de ironias cogitadas que (digo a verdade!) muitas vezes provocam o riso. Já nem sei quantas gargalhadas dei à custa deste senhor, nem tão pouco quantas virei a dar.
Posto isto, resta-me relembrar-lhes a sorte que temos. Sorte por termos tão bons escritores, com formas de escrita tão próprias, tão particulares, tão únicas. Sorte por podermos estudar obras realmente extraordinárias. Sorte por podermos fazer o nosso caminho e sempre ter um sítio onde parar, para logo depois retomarmos a caminhada.
Vinte anos de Prémio Nobel, vários séculos de literatura PONTO FINAL
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TRAVESSÃO